MP 984/2020 é constitucional
27 de junho de 2020 | 12h00
No dia 18 de junho, foi publicada a Medida Provisória 984 de 2020, que alterou preceitos da Lei 9.615/98 (Lei Pelé). Uma das mudanças foi no regramento do direito que os clubes têm de autorizara transmissão por radiodifusão das partidas.
No texto anterior da Lei Pelé, essa prerrogativa era partilhada entre os clubes que participassem da partida. Na prática, o que ocorria era que eles deveriam negociar conjuntamente a exibição. Na regra inserida pela MP, o direito de autorizar pertence apenas ao mandante da partida.
Essa mudança é substancial e as opiniões que circulam nas redes caminham no sentido da inconstitucionalidade da MP. São dois os principais fundamentos utilizados. O primeiro: a matéria não tem relevância e urgência. O segundo: a Constituição garante a todos o direito de imagem (art. 5º, X) e a regra estaria
Sobre o primeiro argumento, o Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência pacífica no sentido de que somente em situações excepcionalíssimas, o judiciário pode se imiscuir nos critérios de relevância e urgência. A MP 984/2020 não se enquadra na excepcionalidade porque não consubstancia “exercício anômalo e arbitrário das funções estatais” (ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004).
O segundo argumento atribui inconstitucionalidade à MP porque ao excluir o clube visitante do poder decisório, estaria impedindo o exercício do direito de imagem dos clubes e dos atletas. O argumento é atraente, mas não tem consistência.
É válido lembrar que o texto da MP não exclui a participação no pagamento do atleta do clube visitante. O texto é claríssimo: transfere ao clube mandante o poder de decidir sobre a transmissão, mas não diz que esse clube não deverá pagar ao atleta adversário. Nesse prisma, está intacto o direito de imagem do atleta.
Com relação ao direito de arena do clube visitante, na regra anterior antes da alteração imposta pela MP, já havia uma restrição que ocorria na prática. Ao determinar que pertencia a ambos o direito de autorizar ou proibir a transmissão das partidas, a Lei Pelé criou uma situação que tornava o exercício do direito por um clube dependente da vontade de outro. Apresentamos um exemplo para esclarecer. Imaginemos um campeonato de futebol disputado por 3 clubes, no qual o clube A e B negociam a transmissão por uma determinada rede de TV, mas o clube C se nega a aceitar as condições. Nesse campeonato de turno e returno teríamos as 6 disputas. Se o clube C se negar a autorizar a transmissão de suas partidas, a rede de TV só exibiria 2, o enfrentamento de A com B no turno e no returno. Todas as demais, que contam com a participação de C, não poderiam ser transmitidas. A regra anterior colocava ao arbítrio de um clube o poder sobre o direito de arena de outro. Essa situação não é hipotética. De fato, aconteceu no Campeonato Carioca de 2020, quando o Flamengo se recusou a assinar contrato de transmissão de suas partidas com a Rede Globo, tolhendo o direito de todos os outros clubes que o enfrentavam.
Agora imaginemos esse mesmo campeonato, na regra atual imposta pela MP. O clube C só teria o poder de decidir sobre duas partidas, quando fosse o mandante das partidas contra os clubes A e B. Como consequência, a rede de TV estaria autorizada a transmitir 4 partidas. Ganham os clubes, ganham os torcedores e ganha a rede de TV.
No campeonato Brasileiro de Futebol deste ano, estavam previstos 380 jogos, de turno e returno. Uma determinada rede TV assinou contrato com 8 clubes e outra com 12 clubes. Isso significa que, na regra antiga da Lei Pelé, 144 jogos não podem ser transmitidos, porque quando houver um enfrentamento de um clube que assinou com a rede X com outro da rede Y, a partida não pode ser transmitida por nenhuma das duas. Na regra da MP a realidade mudaria: todos seriam transmitidos ou por uma ou pela outra.
Milita a favor da regra atual posta na MP um argumento que decorre da lógica da organização dos campeonatos imposta pelas entidades de administração do desporto. O clube mandante se sujeita solidária e pessoalmente a uma série de obrigações relacionadas à viabilização dos eventos desportivos e à promoção da segurança das partidas, destacando-se policiamento, credenciamento, logística de toda sorte, obrigações fiscais e previdenciárias, cuidados com saúde de atletas, árbitros e torcedores entre outras inúmeras. Nada disso é cobrado do clube visitante.
Considerando que o direito de arena se circunscreve à prerrogativa de negociar a transmissão de imagens de espetáculos desportivos, é certo que a atribuição de sua titularidade ao clube mandante reflete contrapartida justa aos encargos a que exclusivamente se obriga diante da mera participação competitiva, não alijando o clube visitante e de todos os atletas profissionais participantes de seus direitos de imagem.
Não vislumbramos, por essas razões, inconstitucionalidade da MP no que toca ao critério de relevância e urgência e com relação ao direito de imagem de atletas e clubes. A nova regra, na prática, acaba beneficiando público, clubes e redes de transmissão das partidas.
*Mauricio Corrêa da Veiga e Luciano Andrade Pinheiro, sócios do Corrêa da Veiga Advogados