Notícia

Lei Pelé rompeu com ‘passe’ e mudou relação entre atletas e clubes há 20 anos

“O relator conseguiu desagradar a gregos e baianos”, disse Eurico Miranda diante do texto da Lei Pelé, aprovado em votação simbólica na Câmara dos Deputados no dia 10 de dezembro de 1997.

A tramitação havia começado em setembro daquele ano e, mesmo com o pedido de urgência, se arrastava em Brasília, enquanto o presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Ricardo Teixeira fazia viagens pelo Brasil com a missão de mobilizar parlamentares e cartolas contra o projeto, que enfraqueceria a influência das federações sobre os times.

Até mesmo João Havelange, presidente da Fifa, se mostrou contrário às mudanças, ameaçando tirar o Brasil da Copa do Mundo da França.

Na noite anterior, Eurico, deputado pelo PPB-RJ, vice-presidente de futebol do Vasco e representante da bancada da bola, e Ronaldo Cezar Coelho (PSDB-RJ), vice-líder do governo, quase trocaram socos no plenário.

O projeto de autoria de Edson Arantes do Nascimento, então ministro do Esporte no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), tinha várias frentes, mas o grande destaque era o fim do chamado “passe”, mecanismo que mantinha o atleta preso ao clube independentemente de um contrato de trabalho.

Também previa: a obrigatoriedade da conversão dos clubes em empresa; autonomia para as agremiações criarem ligas e campeonatos independentemente das confederações e federações; extinção dos bingos; fiscalização do Ministério Público sobre as entidades esportivas.

Promulgada no dia 24 de março de 1998, a Lei Pelé foi um marco no direito desportivo e no futebol, embora a insurgência da bancada da bola tenha conseguido limar pontos importantes desde então.

Ao sancionar o texto, FHC concedeu uma carência para a extinção do passe, que passou a valer em 26 de março de 2001, 20 anos atrás.

“Mesmo ao término da relação de trabalho, o atleta permanecia com seu vínculo desportivo preso ao clube. Apenas poderia firmar contrato de trabalho com outra equipe caso esta indenizasse o clube anterior; tal situação prejudicou a carreira de muitos atletas à época”, diz o advogado Rafael Cobra de Toledo Piza, presidente da comissão de direito desportivo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Santos.

A mudança da lei proporcionou o trabalho de agentes, empresários que passaram a ter procuração dos atletas para negociarem contratos com os dirigentes, e o de advogados como Gislaine Nunes.

Ainda durante o prazo de carência, ela ingressou com quase 100 ações na Justiça do Trabalho, escorada em brechas da Lei Pelé (punições para atrasos no recolhimento do FGTS e atraso de salários, não pagamentos de 13º, férias e abono) e obteve êxito em quase todas.

Gislaine já atuava para o Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo e prospectou clientes de todo o país. A carteira, no início da Lei Pelé, reuniu de Alexandre Buzetto, goleiro do modesto Comercial de Ribeirão Preto, ao meia Juninho Pernambucano, do Vasco de Eurico.

“Eu comecei a percorrer o Brasil, a internet era precária e tinha que protocolar a petição em cada cidade. Recebi ameaças, fui humilhada por advogado na frente do juiz porque escrevi o nome do time errado na ação. Pensa, no caso do Juninho, se era fácil enfrentar um Eurico Miranda?”, relata Gislaine. “Vim de uma família humilde e, quando a Lei Pelé foi sancionada, pensei que poderia ser benéfica para o meu trabalho.”

Algumas mudanças ficaram pelo caminho
Ao ver a versão do texto aprovada na Câmara, Pelé brincou, em almoço com parlamentares da base do governo que, pela primeira vez, atuou na retranca. A oposição conseguiu um prazo de dois anos para as equipes se transformarem em empresas. Assegurou também a continuidade dos bingos e livrou as entidades da fiscalização do Ministério Público.

O senador Maguito Vilela (PMDB-GO), integrante da bancada da bola, conseguiu tirar a obrigatoriedade de as entidades esportivas adotarem o modelo empresarial.

“O legislador optou por inserir na lei um comando puramente formal, uma determinação para transformação ou criação de empresa, mas não se preocupou em criar os instrumentos para recepcionar e viabilizar a atuação nesse novo mercado”, diz o advogado Rodrigo Monteiro de Castro, coautor do livro “Futebol, Mercado e Estado”.

“O texto não tratou e não criou vias de financiamento da atividade futebolística e do acesso ao mercado de capitais. Também deixou de lado aspectos relevantes como a fixação de um modelo específico de governança, a recuperação extra ou judicial, o regime de tributação”, completa.

O tema não teve grandes avanços até hoje. Atualmente, existem duas propostas de adoção do modelo empresarial no Senado: a do deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ), licenciado enquanto chefia a Casa Civil do Rio de Janeiro, e a da Sociedade Anônima do Futebol (SAF). O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), deverá passar a relatoria desta última para Carlos Portinho (PL-RJ).

Segundo Castro, tanto a economia do país quanto a indústria futebolística estão mais amadurecidas hoje para lidar com o tema. “Havia pouca liquidez e compreensão do ambiente de futebol, as informações eram mais restritas. O Brasil não estava pronto, foi uma dupla infelicidade.”

Legislação perdeu força com os anos
Especialistas consideram que a Lei Pelé, além de ter perdido força como responsável pela regulação do esporte, está obsoleta no aspecto da relação trabalhista e na administração das entidades.

“A Lei Pelé estabelece a legislação trabalhista para reger a relação clube e atleta, mas a CLT tem limitações que não compreendem a rotina no desporto”, diz o advogado Maurício Corrêa da Veiga. “Como exemplo, esporadicamente o jogador trabalha depois da 22h, e assim não faz jus ao direito de adicional noturno, mas há decisões das duas formas.”

Em uma das mudanças mais sensíveis de seu texto, em 2011, houve redução no direito de arena dos jogadores, de 20% para até 5%.

Ficou estabelecida, em caso de rescisão contratual, a cláusula indenizatória (quando o jogador se transfere para outro time pode ter que pagar até 2.000 vezes o valor do salário) e a cláusula compensatória (quanto o time rescinde o contrato tem que restituir ao atleta até 400 vezes o valor do salário).

“Infelizmente a lei está sofrendo uma mutilação por força dos clubes, e os atletas são muito desunidos. Não sabem a força que têm”, diz Gislaine.

Fonte: Folha de São Paulo